Sobre a gratidão - Diálogo de Sócrates[1] com seu filho
“É preciso ensinar cuidadosamente à criança a odiar os vícios por sua
própria estrutura e ensiná-las a natural deformidade, para que fujam deles não
somente pelas ações, mas principalmente em seu coração; que um só pensamento de
vício lhes seja odioso, seja qual for a máscara que use. Montaigne [2]
Sócrates, um dos filósofos mais
importantes do mundo, foi também um educador por excelência, um pai atencioso e
sábio.
Xenofonte, filósofo, historiador e
chefe militar da Grécia antiga, foi discípulo de Sócrates e escreveu algumas
passagens da vida íntima de seu mestre.
Conta Xenofonte que
um dia Sócrates, notando que seu filho mais velho, Lamprocles, estava irritado
com sua mãe, teve com ele o seguinte diálogo:
- Diz-me, ó meu filho, tu sabes que há
homens a quem chamamos ingratos?
- Seguramente, respondeu o jovem.
- Então também sabes o que é preciso
fazer para receber esse qualificativo?
- Sim. São chamados de ingratos aqueles
que receberam benefícios e que, quando poderiam, não testemunharam
reconhecimento.
- Percebes que os ingratos são
classificados entre os homens injustos? (...)
- Parece-me que assim é. E creio que é
sempre injusto não testemunhar reconhecimento àquele de quem recebemos um
benefício, seja amigo ou inimigo.
- Se é assim, meu filho, a ingratidão
não é pura injustiça?
- Sem dúvida.
- E um homem não é tanto mais injusto
quanto maiores forem os benefícios recebidos, se é ingrato após ser
beneficiado?
- Concordo.
- Pois bem, onde encontraremos alguém
que tenha recebido mais benefícios do que o filho recebe de seus pais? É a eles
que deve a sua existência, o espetáculo de tantas maravilhas, o gozo de tantos
bens que os deuses concedem aos homens; e esses bens nos parecem tão preciosos,
que nada tememos mais do que perdê-los.
Os Estados estabeleceram a pena de
morte contra os maiores crimes, porque não imaginaram pena mais pavorosa para
deter a injustiça.
O homem alimenta aquela que deve lhe
dar filhos; pensa nos filhos que terá um dia, poupa antecipadamente, acumula em
tão grande quantidade quanto possa, tudo o que crê ser útil para sustentar a
vida da criança; a mulher recebe e conduz penosamente esse fardo que põe seus
dias em perigo; dá a seu filho uma parte de sua própria substância, leva-o a
bom termo e o coloca no mundo suportando dores cruéis. Depois, ela o alimenta e
dele cuida, sem jamais receber por isso algum serviço, e sem que o filho saiba
por si mesmo quem é sua benfeitora. Ele não pode dizer quais são suas
necessidades, mas ela busca adivinhar o que lhe pode ser útil e lhe dar prazer,
e se esforça para satisfazê-lo.
A mãe nutre seu filho durante muito
tempo, e por ele suporta as fadigas de todos os dias e todas as noites, sem
saber que reconhecimentos receberá por tanto esforço.
E os pais não se contentam somente em
alimentar seus filhos; quando estes chegam numa idade em que podem se instruir,
eles comunicam-lhes todos os conhecimentos úteis que eles próprios possuem, e
os enviam para aprender com um outro o que creem não poder lhes ensinar, e tudo
isso sem poupar cuidados nem despesas para torná-los o melhor possível.
- É certo, diz o jovem, que ela tenha
feito tudo isso, e ainda mil vezes mais, no entanto, seu humor não é menos
intolerável.[3]
- Não achas, rapaz, que a cólera de um
animal seja mais insuportável que a de uma mãe?
- Não, certamente, pelo menos de uma
mãe como a minha.
- Por acaso ela já te feriu com alguma
mordida ou com um coice, como tanta gente já foi agredida por animais?
- Mas, por Júpiter, ela diz coisas que
em vez de ouvir a gente prefere a morte.
- E tu, quantos dissabores
insuportáveis não lhe causou, desde a tua infância, dia e noite, com teus
gritos e tuas ações? Quanto sofrimento não lhe causaste com tuas enfermidades?
- Pelo menos eu jamais lhe disse ou fiz
qualquer coisa que a fizesse corar de vergonha.
- Pois quê! Achas mais penoso ouvir o
que tua mãe te diz, do que aos comediantes escutar as injúrias que se
prodigalizam mutuamente nas tragédias?
- Mas eles não pensam que aquele que
lhes acusa queira lhes infligir uma pena, que aquele que os ameaça queira lhes
fazer algum mal, eis porque eles suportam tão facilmente, eu penso, tudo o que
se lhes diz.
- E tu, que sabes bem que tua mãe, por
mais que te diga não quer o teu mal, quer mesmo te ver mais feliz, te irritas
com ela? Ou pensas que tua mãe seja tua inimiga?
- Não, certamente não é o que penso.
- Pois bem, essa mãe que te ama, que em
tuas enfermidades te dedica todos os cuidados possíveis, que nada negligencia
para que tenhas saúde e para que nada te falte, que roga aos deuses que te
cumulem de bênçãos e faz votos e oferendas em teu nome, tu te queixas de seu
humor? De minha parte, penso que se não podes suportar uma mãe dessas, não
podes suportar nada de bom. Mas, diz-me, pensas que seja preciso ter
consideração por alguém, ou não obedecer ninguém, nem a um general, nem a
qualquer outro magistrado?
- Creio que seja preciso dedicar
cuidados a certos homens.
- Tu queres, sem dúvida, agradar também
a teu vizinho, para que ele acenda um fogo para ti quando necessites, para que
queira te prestar algum serviço, e que voluntariamente te
socorra em caso de acidente?
- Sem dúvida.
- E quanto a um companheiro de viagem,
de navegação, é indiferente para ti tê-lo por amigo ou
inimigo, ou pensas que
seria preciso obter sua benevolência?
- Sim, certamente.
- Logo, estás prestes a dar atenção a
todo mundo, e pensa não dever consideração à tua mãe, que te ama mais que
todos? (...)
- Assim, meu filho, se tu és sábio,
pedirás aos deuses que perdoem tuas ofensas para com tua mãe, para que não te
vejam como um ingrato, e não te recusem seus benefícios; tomarás cuidado também
para que os homens, sabendo de teu pouco respeito para com teus pais, não te
desprezem e não rejeitem tua amizade. Se eles suspeitassem que tu fostes
ingrato para com teus pais, nenhum deles te julgaria capaz de ser reconhecido
por algum benefício.[4]
Diálogos como esse entre Sócrates e seu
filho não são comuns em nossos dias.
Como pai de sabedoria, o filósofo se
dirige calmamente à razão de seu filho, com intuito de fazê-lo compreender que
a ingratidão é uma injustiça e que inevitavelmente trará sofrimentos ao
ingrato.
Sócrates não age como certos pais, que
mais investem contra o corpo daquele que desejam ensinar do que à razão, e que
mais apavoram e confundem os filhos do que os educam.
Sócrates não faz ameaças, não tenta
convencer o filho com promessas, não grita nem agride a sua pessoa com
xingamentos, pois seu objetivo é fazer refletir, é corrigir seu caráter, educar
com base na razão, no bom senso, para o que é preciso calma e bons argumentos.
O fato de irritar-se com o filho quando
este age mal, é demonstrar falta de argumentos, fraqueza moral, e é também a
melhor maneira de não se obter o que se deseja, que é a educação do filho
querido.
[1] Filósofo grego que viveu entre 469 a.C a 399 a.C.
[2] Ensaios, livro I - cap. XXII.
[3] Diz-se que Xantipa, esposa de Sócrates e mãe de Lamprocles, tinha um
temperamento difícil.
[4] Traduzido pela equipe Filosofia no ar, a partir do texto francês XÉNOPHON – Entretiens Mémorables de Socrate,da coleção Les Auteurs Grecs, expliqués d’après une méthode nouvelle, par deux
traductions françaises. Par une Société de professeurs et d’Hellénistes. Paris,
Librairie de L. Hachette et Cie. 1846.)