Por Antonio Cesar Perri de Carvalho
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A
edição da Revista Espírita de janeiro de 1868 anunciava que o livro A Gênese estaria
à venda no dia 6 de janeiro de 1868.
Com A Gênese completa-se
o quinto volume das chamadas Obras Básicas da Codificação. Allan Kardec
discorre sobre questões importantes que destaca no subtítulo: os milagres e as
predições segundo o Espiritismo; e analisa a origem do planeta de acordo com as
leis da Natureza e a interpretação espírita.
O
exemplar da Revista Espírita, de fevereiro de 1868, trazia uma dissertação do
espírito São Luís sobre a nova obra:
“A religião,
antagonista da Ciência, respondia pelo mistério a todas as questões da
filosofia céptica. Ela violava as leis da Natureza e as adaptava à sua
fantasia, para daí extrair uma explicação incoerente de seus ensinamentos. Vós,
ao contrário, vos sacrificais à Ciência; aceitais todos os seus ensinamentos
sem exceção e lhe abris horizontes que ela supunha intransponíveis. [...] A
questão de origem que se prende à Gênese é para todos uma questão apaixonada.
Um livro escrito sobre esta matéria deve, em consequência, interessar a todos
os espíritos sérios.”1
Ao
longo do ano de 1868 transcreveu vários trechos dessa nova obra naRevista
Espírita. Surgem notícias sobre duas novas edições: 2a edição (março) e 3a edição (abril). Até a desencarnação de Kardec (1869),
constam referências a três edições dessa Obra Básica do Codificador.1,2
A
maioria das traduções para o português foi feita a partir de edição francesa do
ano de 1870, ou seja, após a desencarnação de Kardec, como as edições da FEB do
IDE. Apenas a editora do Centro Espírita Léon Denis, do Rio Janeiro, lançou uma
tradução da edição francesa de 1868.
Há
dúvidas e polêmicas a respeito das edições dessa obra em francês, lançadas logo
após a desencarnação do Codificador.
Recentemente,
a Confederação Espírita Argentina (CEA) providenciou a edição em espanhol de
versão pioneira de A Gênese, isto é, a lançada em janeiro de 1868. Ao mesmo tempo
a CEA divulgou o resultado de estudos que estimulou, e divulgou em publicação
lançada em Buenos Aires em outubro de 2017 e distribuiu uma carta explicativadurante
reunião da Comissão Executiva do Conselho Espírita Internacional, ocorrida em
Bogotá (Colômbia), em outubro de 2017, com divulgação de carta do presidente da
Confederação Espírita Argentina. Consta a informação de que a tradução de A
Gênese teria sido motivação de um questionamento em um momento da
reunião do Conselho Federativo Nacional da FEB, em novembro de 2017.
A nosso ver são
louváveis as providências do presidente da Confederação Espírita Argentina em
divulgar o resultado do estudo que apoiou e em levar a questão ao CEI.
A CEA solicitou uma
pesquisa à sra. Simoni Privato Goidanich, junto aos Arquivos Nacionais da
França e na Biblioteca Nacional da França, localizadas em Paris, assim como na
própria CEA e na Associação Espírita Constancia, de Buenos Aires. A conclusão
da pesquisa é que um único exemplar, publicado em 1868, foi depositado
legalmente durante a existência física de Allan Kardec na Biblioteca Nacional
da França. Assim o Codificador não teria modificado o conteúdo.4 Estes
esclarecimentos se encontram no livro El legado de Allan Kardec, de
autoria de Simoni Privato Goidanich, lançado
na sede da C.E.A., em Buenos Aires, aos 3/10/2017.5
Assim, reaparecem
dúvidas que já existiam sobre a fidedignidade da versão francesa que serviu de
base para as traduções de A Gênese.
Há suspeitas de que
alguns trechos de A Gênese poderiam ter sido alterados
provavelmente por Pierre-Gaëtan Leymarie (1827-1901). Com a desencarnação de Kardec, este dirigente passou a exercer as funções de redator-chefe e diretor
da "Revue Spirite" (1870 a 1901), gerente da "Librairie Spirite"
(1870 a 1897) e foi presidente da “Sociedade para a
Continuação das Obras Espíritas de Allan Kardec”.2,6 Passou a cuidar das edições e autorizações de
traduções de obras de Kardec.2
Inclusive,
há o caso das traduções pioneiras das obras de Kardec, em nosso país. No princípio do ano de
1875, Pierre-Gaëtan Leymarie autorizou em carta ao dr. Joaquim
Carlos Travassos a tradução das obras de Allan Kardec para o português, cuja
correspondência foi publicada na Revista Espírita. Com exceção de A Gênese, Joaquim Carlos
Travassos (1839-1915) utilizando o pseudônimo de "Fortúnio", traduziu
para o português quatro obras básicas da Codificação, publicadas pela Editora B. L.
Garnier, do Rio de Janeiro, em
1875 e 1876.6 Fato
interessante foi o comentário de Zêus Wantuil em biografia sobre o tradutor
Travassos: “[...]sem nos referirmos ao bom estilo do tradutor, é o judicioso
esclarecimento, de fundo rustenista, que vem na obra ‘O Céu e o Inferno’...”6 Há
correspondências de Leymarie com a então novel Federação Espírita Brasileira e
a 1aedição da revista Reformador, de janeiro de
1883, noticia que ele representou a França em congresso ocorrido em Bruxelas,
objetivando a criação de uma União Espiritualista Universal.7
Muitos fatos
ressurgem agora com a tradução para o português de livro histórico e esgotado
de autoria Berthe Fropo - Beaucoup de Lumière(1884) -,
disponibilizado em edição digital bilíngue: a tradução em português e o
original em francês. A autora foi espírita atuante, fiel aos
ideais de Allan Kardec, muito amiga de Amélie Boudet, vizinha e apoiadora desta
depois da desencarnação do codificador do Espiritismo.2 Nesta
obra fica clara a ação polêmica de Leymarie, que inclusive foi envolvido no
histórico “processo dos espíritas”, relacionado com exploração das chamadas
fotos de espíritos, em que foi condenado.
No referido livro,
Berthe Fropo aborda pontos destacados do desvirtuamento doutrinário ocorrido no
movimento espírita francês logo após a desencarnação de Kardec, comprometendo a
continuação das obras do Codificador da Doutrina; fica claro que “com o aval de
Amélie Boudet, Gabriel Delanne e Berthe Fropo se lançaram numa investida para
reavivar os planos de continuação das obras de Kardec, que nas mãos de Leymarie
haviam sido deturpados, por influência de ideologias outras, como o
roustainguismo e — ainda mais fortemente — a mística doutrina da Teosofia de
Madame Blavatsky e do Coronel Olcott.”2
Portanto, há indícios
que robustecem as suspeitas sobre eventuais alterações promovidas por Leymarie
em itens de A Gênese.
Nas edições da FEB,
apenas a traduzida pelo Evandro Noleto Bezerra, também a partir da 5aedição
francesa de 1870, traz uma nota de rodapé no item 67 do capítulo XV, anotando
que há uma diferença com relação à edição de 1868, com Kardec ainda encarnado.
Justifica que “ao revisar a obra com vistas à 4a edição,
Allan Kardec houve por bem suprimir o item 67 que constava nas edições anteriores”.
Nessa nota de rodapé, de número 124, o tradutor Evandro transcreve o item
suprimido em outras versões “pelo seu inestimável valor histórico, o item 67
das três primeiras de edições de A Gênese”.8 Porém
como fica a afirmação de revisão da 4aedição, feita por Allan
Kardec?
Na edição do Centro
Espírita Léon Denis, a tradutora Albertina Escudeiro Sêco, se baseia numa 4aedição
francesa, de 1868.
Essa tradutora do
CELD introduz o item 67 original, a saber:
“67. A que se reduziu
o corpo carnal? Este é um problema cuja solução não se pode deduzir, até nova
ordem, exceto por hipóteses, pela falta de elementos suficientes para firmar
uma convicção. Essa solução, aliás, é de uma importância secundária e não
acrescentaria nada aos méritos do Cristo, nem aos fatos que atestam, de uma
maneira bem peremptória, sua superioridade e sua missão divina. Não pode, pois,
haver mais que opiniões pessoais sobre a forma como esse desaparecimento se
realizou, opiniões que só teriam valor se fossem sancionadas por uma lógica rigorosa,
e pelo ensino geral dos espíritos; ora, até o presente, nenhuma das que foram
formuladas recebeu a sanção desse duplo controle. Se os espíritos ainda não
resolveram a questão pela unanimidade dos seus ensinamentos, é porque
certamente ainda não chegou o momento de fazê-lo, ou porque ainda faltam
conhecimentos com a ajuda dos quais se poderá resolvê-la pessoalmente.
Entretanto, se a hipótese de um roubo clandestino for afastada, poder-se-ia
encontrar, por analogia, uma explicação provável na teoria do duplo fenômeno
dos transportes e da invisibilidade. (O Livro dos Médiuns, caps. IV e V.).” E
surge um item 67, em geral ausente nas várias versões, e com uma renumeração
aparece o item 68, identificado como item 67, nas demais traduções.9
De qualquer maneira
persistem os recentes questionamentos que mencionamos. O ideal seria que as
editoras das obras de Allan Kardec somassem esforços para se esclarecer as
dúvidas que vêm sendo aventadas. Os 150 anos do lançamento de A Gênese,
poderiam ter como marco a clara definição sobre a fidedignidade das versões das
primeiras edições desta obra em francês e se acrescentar nota(s) explicativa(s)
nas edições traduzidas para o português.
Referências:
1) Kardec,
Allan. Trad. Bezerra, Evandro Noleto. Revista Espírita. Ano
XI. No. 1. 1868. Rio de Janeiro: FEB.
2) Fropo,
Berthe. Trad. Lopes, Ery; Miguez, Rogério. Muita luz. 1.ed. Edição
digital: www.luzespirita.org.br;
acesso em novembro de 2017.
3) Kardec,
Allan. Trad. Martínez, Gustavo N. La génesis. 1.ed. Buenos Aires:
Confederación Espiritista Argentina. 2017.
4) Carta
do presidente da Confederación Espiritista Argentina, Sr. Gustavo
N. Martínez, de 14/10/2017, distribuída em reunião do Conselho Espírita
Internacional, em Bogotá (Colômbia).
6) Wantuil,
Zêus. Grandes espíritas do Brasil. 1.ed. Cap. Joaquim Carlos
Travassos. Rio de Janeiro: FEB. 1969.
7) Reformador,
Ano I, n.1, 21 de Janeiro de 1883, p.1-4.
8) Kardec,
Allan. Trad. Bezerra, Evandro Noleto. A gênese. 1.ed. Cap. XV. Item
67. Rio de Janeiro: FEB. 2010.
9) Kardec,
Allan. Trad. Sêco, Albertina Escudeiro. A gênese. 3.ed. Cap. XV.
Itens 67-68. Rio de Janeiro: Ed. CELD. 2010.
O autor é
ex-presidente da FEB e da USE-SP.

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