Trecho* do livro Há dois mil anos, de
Emmanuel, na sua segunda parte, no capítulo IX, que narra diálogo entre Publius
Lentulus, senador do Império romano, sua filha Flávia Lentúlia e a serva Ana. Neste trecho há a descrição da Defesa de Jesus por Lívia, espoda do senador...
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Corria
o ano de 78, na placidez das paisagens formosas da Campânia. Enquanto Tibur
representava uma estação de cura e descanso regenerador para os romanos mais
ricos, Pompéia era bem a cidade dos romanos mais sadios e mais felizes. Em suas
vias públicas encontravam-se, a cada passo, os mármores soberbos e o bom gosto
das mais belas construções da capital aristocrática do Império. Em seus templos
suntuosos, aglomeravam-se assembleias brilhantes, de patrícios educados e
cultos, que se instalavam na linda cidade, povoada de cantores e poetas, ao pé
do Vesúvio, e iluminada por um céu de maravilhas, cheio de ridente sol ou
bordado de estrelas cintilantes.
Publius
Lentulus, agora, sobremaneira apreciava a palavra simples e convincente de Ana,
que envelhecera ao lado de Flávia, qual bela figura de marfim antigo. Era de
lhe ver o interesse comovido e a sua alegria íntima ao ouvi-la sobre a excelência dos princípios cristãos,
quando se entretinham em recordações da Judeia distante.
Nessas
amáveis palestras, entre os três, logo após o jantar, discutia-se a figura do Cristo e as sublimadas ilações da sua doutrina,
conseguindo o senador, pela força das circunstâncias, meditar melhor os
grandiosos postulados do evangelho, ainda fragmentário e quase desconhecido,
para ligar os princípios generosos e santos do Cristianismo à personalidade do
seu divino fundador.
Longas
horas ficavam ali, no terraço amplo, aquelas três criaturas em cujas frontes se
vincavam as experiências dos anos, como se as brisas da noite fossem sopros
suaves de inspirações celestes, sob a luz branda das estrelas.
Por
vezes, Flávia fazia um pouco de musica, que lhe saía da harpa como fulgurante
gemido de dor e de saudade, alcançando o coração paterno mergulhado no abismo
das reminiscências dolorosas, é que a
musica dos cegos é sempre mais espiritualizada e mais pura, porque, na sua
arte, fala a alma profundamente, sem as emoções dispersas dos sentidos
materiais.
Uma
noite, obedecendo ao hábito de muitos anos, vamos encontrar aquelas três
criaturas no espaçoso terraço da vila de Pompeia, em doces rememorações.
Havia
mais de sete anos que quase todas as palestras versavam, ali, sobre a
personalidade do messias e a excelsa pureza da sua doutrina, observando,
antes de tudo, a precisa discrição, porquanto os adeptos do Cristianismo continuavam perseguidos, embora com menos crueldade.
Em
todo caso, invariavelmente, a conversação era de enfermos e de velhos, sem provocar o interesse dos amigos mais
moços e mais felizes.
Depois
de algumas lembranças e comentários de Ana, a respeito da angustiosa tarde do
calvário, exclamava o velho senador em tom convencido:
-
De mim para comigo, tenho a certeza de
que Jesus ficara para sempre no mundo, como o mais elevado símbolo de
consolação e fortaleza moral para todos os sofredores e para todos os tristes!...
“Desde
os primeiros dias de minha cegueira material procuro, intimamente,
compreender-lhe a grandeza e não consigo apreender toda a extensão da sua
excelsitude e dos seus ensinos.
“Lembro-me,
como se fosse ontem, do crepúsculo formoso em que o vi pela primeira vez, ao
longo das margens do Tiberíades...”
-
Eu também - murmurou Ana – não consigo olvidar aquelas tardes deliciosas e
claras em que todos os servos e sofredores de Cafarnaum nos reuníamos à margem
do grande lago, esperando o suave enlevo das suas palavras.
E
como se estivesse contemplando o desfile de suas recordações mais queridas, com
os olhos da imaginação, a velha serva continuava:
-
O Mestre apreciava a companhia de Simão e dos filhos de Zebedeu e, quase
sempre, era em uma de suas barcas que Ele vinha, solícito, atender às nossas
rogativas...
-
O que mais me assombra – dizia Publius Lentulus impressionado – é que Jesus não era, que se soubesse, um doutor da Lei ou sacerdote formado pelas
escolas humanas. Sua palavra, entretanto, estava como que ungida de uma graça
divina. O olhar sereno e indefinível penetrava o fundo da alma e o sorriso
generoso tinha a complacência de quem, possuindo toda a verdade, sabia
compreender e perdoar os erros humanos. Seus ensinos, diariamente meditados por
mim, nestes últimos anos, são revolucionários e novos, pois arrasam todos os
preconceitos e de família, unindo as almas num grande amplexo espiritual de
fraternidade e tolerância. A filosofia humana jamais nos disse que os aflitos e
pacíficos são bem-aventurados no Céu, entretanto, com as suas lições
renovadoras, modificamos o conceito de virtude, que, para o Deus soberano e
misericordioso das Alturas, não está no homem mais rico e poderoso do mundo,
mas no mais justo e mais puro, embora humilde e pobre.
Sua
palavra compassiva e carinhosa espalhou ensinamentos que somente hoje posso
compreender, na sombra espessa e triste dos meus sofrimentos...
-
Meu pai – perguntou Flávia Lentúlia, extremamente interessada na conversação -,
chegaste a ver o Profeta muitas vezes?...
-
Não, filha. Antes do dia nefasto de sua morte infamante na cruz, somente o vi
uma vez, ao tempo em que eras pequenina e doente. Isso bastou, contudo, para que eu recebesse, nas suas palavras
sublimes, luminosas lições para toda a vida. Só hoje entendo as suas
exortações compassivas e carinhosas, compreendendo que a minha existência foi
bem uma oportunidade perdida!... Aliás, já naquele tempo, sua profunda palavra me dizia que eu defrontava, no minuto do nosso
encontro, o maravilhoso ensejo de todos os meus dias, acrescentando, na sua
extraordinária benevolência, que eu poderia aproveitá-lo naquela época ou daí a
milênios, sem que me fosse possível apreender o sentido simbólico de suas
palavras...
-
Todas as concessões de Jesus se
esteavam na Verdade santificada e consoladora – acrescentou Ana, agora
gozando de toda a intimidade com os seus senhores.
-
Sim – exclamou Publius Lentulus, concentrado nas suas reminiscências -, minhas
observações pessoais autorizam-me a crer da mesma forma.
“Se eu tivesse aproveitado a exortação de
Jesus naquele dia, talvez houvesse alijado mais de metade das provações amargas
que a Terra me reservava... Se houvesse buscado compreender sua lição de amor e
humildade, teria procurado André de Gioras, pessoalmente, reparando o mal que
lhe havia feito, com a prisão do filho ignorante, demonstrando-lhe o meu
interesse individual, sem confiar tão somente nos funcionários irresponsáveis
que se encontravam a meu serviço... Guiado por esse interesse, teria encontrado
Saul facilmente, pois Flamínio Severus seria, em Roma, o confidente dos meus
desejos de reparação, evitando dessa maneira a dolorosa tragédia da minha vida
paternal.
“Se houvesse entendido bastante a sua
caridade, na cura de minha filha, teria conhecido melhor o tesouro espiritual
do coração de Lívia, vibrando com o seu espírito na mesma fé, ou caindo
juntamente com ela na arena ignominiosa do circo, o que seria suave, em
comparação com as lentas agonias do meu destino; teria sido menos vaidoso e
mais humano, se lhe houvesse entendido a preceito a lição de fraternidade...”
-
Meu pai – exclamava, porém, a filha, de molde a confortar-lhe as agruras do
coração -, se Jesus é a sabedoria e a verdade, de qualquer modo ele saberia
compreender as razões da vossa atitude, sabendo que fostes forçado pelas
circunstâncias a manter esse ou aquele princípio em vossa vida.
-
Minha filha, nestes últimos anos – revidou Publius ponderadamente -, tenho a
presunção de haver chegado às mais seguras conclusões a respeito dos problemas
da dor e do destino...
“Acredito hoje, com a experiência própria
que as atividades penosas do mundo me ofertaram, que nós contribuímos,
sobretudo, para agravar ou atenuar os rigores da situação espiritual, nas
tarefas desta vida. Admitindo, agora, a existência de um Deus Todo-Poderoso,
fonte de toda a misericórdia e todo o amor, creio que a sua Lei é a do bem
supremo para todas as criaturas. Esse código de solidariedade e de amor deve
reger todos os seres e, dentro dos seus dispositivos divinos, a felicidade é o determinismo
do Céu para todas as almas. Toda vez que caímos ao longo do caminho,
favorecendo o mal ou praticando-o, efetuamos uma intervenção indébita na Lei de
Deus, com a nossa liberdade relativa, contraindo uma dívida com o peso dos
infortúnios...
“Não me referindo aos meus atos pessoais,
que agravaram as minhas angustiosas dores íntimas, e considerando Jesus como
medianeiro entre nós e aquele a quem a sua profunda palavra chamava Pai nosso,
fico hoje a pensar se não cometi um erro, forçando a sua misericórdia com a
minha súplica paternal, a fim de que continuasses a viver neste mundo, para o
nosso amor em família, quando eras pequenina!...”
Flávia
Lentúlia e Ana, que acompanhavam os raciocínios do senador, desde muitos anos,
lhe seguiam as conclusões morais, cheias de surpresa, em face da facilidade
íntima com que sabia aliar as lições penosas do seu destino aos princípios
pregados pelo Profeta Nazareno.
-
Na verdade, meu pai – disse
Flávia Lentúlia, depois de longa pausa -, tenho
a impressão de que as forças divinas haviam deliberado arrebatar-me do mundo,
considerando as dores penosas que me esperavam na estrada escabrosa do meu
destino desventurado...
-
Sim – ajuntou o senador, cortando-lhe a palavra -, ainda bem que me
compreendeste. A vida e o sofrimento nos
ensinam a entender melhor o plano das determinações de ordem divina.
“Antigos iniciados das religiões misteriosas
do Egito e da Índia acreditam que voltamos várias vezes à Terra, noutros
corpos!...”
Nesse
instante, o velho patrício fez uma pausa.
Lembrou-se dos seus antigos sonhos,
quando, se vendo com a indumentária de cônsul nos tempos de Catilina, infligia
aos inimigos políticos o suplício da cegueira, a ferro incandescente, quando se
chamava Publius Lentulus Sura.
Nos seus pensamentos caía como que uma
torrente de ilações novas e sublimadas, como se fossem renovadoras inspirações
da sabedoria divina.
Depois
de alguns instantes, como se o relógio da imaginação houvesse parado alguns
minutos, para que o coração pudesse escutar o tropel das lembranças no deserto
do seu mundo subjetivo, murmurava, confortado, na posse tardia do roteiro do
seu amargurado destino:
-
Hoje creio, minha filha, que, se as
energias sábias do Céu haviam decidido a tua morte, em pequenina, determinação
essa que eu possivelmente contrariei com a minha súplica de pai, descoberta em
silêncio pelo Messias de Nazaré no recôndito do meu orgulhoso e infeliz
coração, é que deverias ficar livre do cárcere que te prendia, de modo a te
preparares melhor para a resignação, para a fortaleza e para os sofrimentos. Certamente,
renascerias mais tarde e encontrarias as mesmas circunstâncias e os mesmos
inimigos, mas terias um organismo mais forte para resistir aos embates penosos
da existência terrestre.
“Reconhecemos hoje, portanto, que há uma lei
soberana e misericordiosa a que devemos obedecer, sem interferir no seu
mecanismo feito de misericórdia e sabedoria...
“Quanto a mim, que tive organismo resistente
e fibra espiritual saturada de energia, sinto que, em outras vidas, procedi mal
e cometi crimes nefandos.
“Minha atual existência teria de ser um
imenso rosário de infindas amarguras, mas vejo tardiamente que, se houvesse
ingressado no caminho do bem, teria resgatado um montão de pecados do pretérito
obscuro e delituoso. Agora entendo a lição do Cristo como ensinamento imortal
da humildade e do amor, da caridade e do perdão – caminhos seguros para todas
as conquistas do espírito, longe dos círculos tenebrosos do sofrimento!”
E
lembrando o sonho que relatara a Flamínio, nos tempos idos, concluía:
-
A expiação não seria necessária no
mundo, para burilamento da alma, se compreendêssemos o bem, praticando-o por
atos, palavras e pensamentos. Se é verdade que nasci condenado ao suplício da
cegueira, em tão trágicas circunstâncias, talvez tivesse evitado a consumação
desta prova, se abandonasse o meu orgulho para ser um homem humilde e bom.
“Um gesto de generosidade de minha parte
teria modificado as íntimas disposições de André de Gioras, mas a realidade é
que, não obstante todos os preciosos alvitres do Alto, continuei com o meu
egoísmo, com a minha vaidade e com a minha criminosa impenitência. Agravei,
desse modo, meus débitos clamorosos perante a Justiça divina, e não posso
esperar magnanimidade dos juízes que me aguardam...”
O
velho Publio Lentulus tinha uma lágrima dolorosa no canto dos olhos apagados,
mas Ana, que ansiosa lhe escutara a palavra e conceitos, e que se regozijava
intimamente verificando que o orgulhoso senhor atingira as mais justas conclusões
de ordem evangélica, ilações a que também ela havia chegado nas meditações da
velhice, esclarecia, bondosamente, como se as suas afirmativas simples e
incisivas chegassem no momento justo para consolação de todos:
-
Senador, todas as vossas observações
são criteriosas e justas. Essa lei das vidas múltiplas, em favor do nosso
aprendizado nas lutas penosas do mundo, eu a aceito plenamente, pois, nas suas
divinas lições, Jesus asseverou que “ninguém poderá penetrar o reino dos Céus
sem renascer de novo”. Presumo, todavia, apesar da vossa cegueira material e
dos vossos padecimentos, que sei compreender em toda a sua angustiosa
intensidade, que deveis trazer a alma plena de crença e de esperanças no futuro
espiritual, porque também o Cristo nos afiançou que nosso Pai não quer que se
perca uma só de suas ovelhas!...
Publius
Lentulus sentiu que uma força inexplicável lhe brotava no íntimo, como se fora
manancial desconhecido, de estranho conforto, preparando-o para enfrentar
dignamente todos os amargores.
- Sim – murmurou de leve -, sempre Jesus!... Sempre Jesus!... Sem Ele e
sem os ensinos de suas palavras que nos enchem de coragem e de fé para alcançar
um reino de paz no porvir da alma, não sei bem o que seria das criaturas
humanas, agrilhoadas ao cárcere dos sofrimentos terrestres... Sete anos de
padecimentos infinitos na soledade dos meus olhos mortos, figuram-se-me sete
séculos de aprendizado cruel e doloroso! Somente assim, porém, poderia chegar a
entender a lição do Crucificado!
O
velho patrício, todavia, ao pronunciar a palavra “crucificado”, reconduziu o
pensamento a Jerusalém, na Páscoa do ano 33. Recordou que tivera em mãos o
processo do Emissário divino e, só então, ponderou a tremenda responsabilidade
em que se vira envolvido naquele dia inolvidável e doloroso, exclamando depois
de longa pausa:
-
E pensar que, para um Espírito como
aquele, não houve sequer um gesto decisivo de defesa, da nossa parte, no
angustioso momento da cruz infamante!... A mim, que agora vivo tão somente das
minhas recordações amargas, parece-me vê-lo ainda à frente dos meus olhos, com
os tristes estigmas da flagelação!...
“Nele, concentrava-se todo o amor supremo do
Céu para redenção das misérias da Terra e, entretanto, não vi pessoa alguma
trabalhar pela sua liberdade, ou agir efetivamente em seu favor!...”
-
Menos alguém... – exclamou Ana
inopinadamente.
-
Quem chegou a ter esse gesto nobre?
– perguntou o velho cego admirado. – Não
me constou que alguém o defendesse.
-
É porque ignorastes, até hoje, que
vossa digna consorte e minha inesquecível benfeitora, atendendo aos nossos
rogos, se dirigiu imediatamente a Pôncio Pilatos, tão logo o triste cortejo
havia saído da Corte provincial romana, para interceder pelo Messias de Nazaré,
injustamente condenado pela multidão enfurecida. Recebida pelo governador no
seu gabinete particular, foi em vão que a nobre senhora implorou compaixão e
piedade para o divino Mestre.
-
Então Lívia chegou a dirigir-se a
Pilatos para suplicar por Jesus? – perguntou o senador interessado e
perplexo, recordando aquela tarde angustiosa da sua vida e rememorando as
calunias de Fúlvia, a respeito da esposa.
-
Sim – respondeu a serva -, por Jesus, seu coração magnânimo
desprezou todas as convenções e todos os preconceitos, não vacilando em atender
às nossas súplicas, tudo fazendo por salvar o Messias da morte infamante!...
Publius
Lentulus sentiu, então, grande dificuldade para externar seus pensamentos, com
a garganta sufocada de emoção, dentro de suas amargas lembranças, e com olhos
mortos, marejados de lágrimas...
Ana,
porém, recordava todos os pormenores daquele dia doloroso, relatando suas
passadas emoções, enquanto o senador e a filha lhe escutavam a palavra, tomados
de pranto no caminho da dor, da gratidão e da saudade.
E
era desse modo que, ao fim de cada dia, sob o céu brilhante e perfumado de
Pompeia, aquelas três almas se preparavam para as realidades consoladoras da
morte, dentro da claridade terna e triste das lições amargas do destino, na
esteira das recordações amigas.
*= grifos nossos
Fonte:
Há dois mil anos: episódios
da história do cristianismo no século I: romance / pelo Espírito Emmanuel;
[psicografado por] Francisco Cândido Xavier. – 49 ed. – 11 imp. – Brasília;
FEB, 2017. 349 p.